quinta-feira, 17 de junho de 2010

O coiso.

Quando eu conheci o coiso pela primeira vez, eu tinha 20 anos. Digo pela primeira vez, por que o coiso é bipolar. E no dia seguinte, já era meu aniversário. Comemorei logo pela manhã tomando um café na padaria em que eu o havia conhecido no dia anterior. Conhecido o coiso um, então, no dia dos meus 21 invernos, conhecí o coiso dois, que mal se lembrava de mim e de fato não mantinha o sorriso amigável de um senhorzinho com cara de vovô que rola no chão com os netos. Ele um dia é o coiso um, no outro dia o coiso dois. Passamos então a tomar café toda manhã na esquina na Dr. Arnaldo, coversávamos e discutíamos lamúrias, jornais, medicina, yoga, filosofia, desmatamento e gloabalização. Dependia da personalidade ativada no dia.
E era bem divertido nos dias "um", em meio à nossa correria urbana, tomarmos o tal café com chantily falando sobre o que não se fala com ninguém. Ser aconselhada pela sabedoria Jedai, advertida com palavras amorosas e guiada por um mentor que parecia querer firmar meus pés, me formando uma boa garota, era uma terapia free pack, que me enchia de entendimento e cafeína. Típico de um professor de colégio tradicional, que por mais de 40 anos guiou crianças, adolescentes, jovens e até mesmo adultos, para a maturidade.
Eu falava dos meus homens, descasos e porres. Ele falava do trabalho, da conta na farmácia e do gato velho que estava fazendo acupuntura.
Passavamos nossos 73 minutos diários, dividindo o cotidiano e o impessoal, as bobalheiras de uma garota, os assuntos sérios de um velhinho, o coiso.
O coiso dois é tipo aquele tio avô rico chato que você até queria que morresse pra curtir a vida com o que ele tem debaixo do colchão, mas ao mesmo tempo você pensa: e como é que eu vou ser feliz sem a minha tristeza - pensamento intimista de uma garota que não tem mais com o que se preocupar e acha que o centro do mundo é seu piercing no nariz - sem o meu tio avô ranzinza que guarda alegrias embaixo do travesseiro, desejando que todo o resto do mundo morra infeliz, sem tê-las encontrado e sem ter achado graça em qualquer outra coisa durante a vida? Ele protege o mundo da simplicidade com medo que a maluquice saia de moda. Qualquer coisinho que existe desde 1982 tem medo de sair de moda.
Então, deixa o cinza lá, deixa o coiso lá. Pelo menos eu sei onde ele está, a moda velha está segura e o seu cheiro de mofo sai no dia seguinte e volta com tema descontraído e amigável. Pior é se ele morre no dia "dois" e resolve me assombrar.
Bom, eu estou escrevendo pra dizer que hoje, o coiso não foi. E eu não tinha com quem falar sobre meu dia e todas as outras coisas que me fazem palavras. Ele não foi, e se ele não vai, eu também não vou, à lugar algum, nem à mim mesma e ainda por cima fico sem sentido, fico um dia todo, totalmente sem sentido. Eu olhei mas ele não estava lá. Esperei e não, o coiso não coisou. Tomei um café preto apenas, que era o trocadoo que eu tinha - senão não teria pro ônibus querido - e fui andando com a sensação de vazio, de quem não tinha sido repreendida, compreendida, reprovada ou amada, pela bondade infinita do coiso.
Hoje o coiso me fez acordar às sete da manhã. E não apareceu. Ah, esse coiso maluco. Nem dormir eu posso mais, pois ele não me deixa atrasar. E hoje ele não foi.
Talvez hoje eu não durma de preocupação.
Resolvi que amanhã eu vou quebrar o pau com ele. Chamarei o coiso e o colocarei no seu devido lugar de professor. Vou falar, falar, falar e falar e dizer que aos amigos e alunos, não se abandona. Fiquei perdida, como ele pode fazer isso? Vou mostrar pra ele quem manda.
E sabe o que ele vai fezer? Falar, no maior cinismo, que não tinha botado inseto imaginário nenhum nos meus sonhos pra eu não dormir, que não tinha pedido pra eu dar uma de herói e salvar uma xícara de café a cada dia pra que ela não ser degustada por um desentendedor da arte e que se ele não apareceu, era por que tinha mais o que fazer. Tinha sua dentadura pra esfregar com Veja, tinha seu sapato pra engraxar na praça, tinha jornal pra resgatar da fúria do cachorro do vizinho e eu que realmente precisava dele, que desesperadamente precisava saber viver hoje, era quem estava ficando louca.
Eu pensando bem, não vou contrariar não. Hoje foi o vovô amável que me deixou plantada, ele deve ter tido um real motivo importante, pra não me avisar. Eu não quero correr o risco perder, nem mesmo o pior dos dois e amanhã quem vai estar lá, não vai lembrar de Freud, Yoga nem do significado ímpar que uma garrafinha de Heineken tem. Vai estar estressado, louco, vulcanico e rochoso. Vai apenas ser o coiso dois, frio, indiferente, comum, paulistano e odiado - até a meia noite e sua carruagem de abóbora - ele vai se estressar e não vai se perdoar, por ter sido "um" e ter faltado, por ter deixado à solta a coisa, a louca, a maluca, a frenética, a psicopata, que ele teima em dizer que nos dias pares, vive em mim!

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